Dr. Sávio Schimith R. Mansur - Advogado
Mestrando em Ciências Jurídicas pela Universidade Autônoma de Lisboa - UAL
Texto adaptado a partir da monografia aprovada na Pós-graduação em Direito Civil - Constitucional na UERJ.
A progressão da
propriedade privada em razão de sua finalidade social provoca
transformações sensíveis na sociedade, a exemplo de encará-la
como lugar de habitação, considerando-a o objetivo primário ao
afirmar que "morar sempre foi essencial à consecução das
finalidades humanas, que poderiam ser sintetizadas no plano de
desenvolvimento integral das potencialidades do ser racional, até se
atingir a plenitude possível" 1.
Impende ressaltar o
“amálgama”
existente entre a realidade do ser social e sua necessidade de
moradia, tendo por perspectiva conceitual a visão da “Declaração
dos Direitos do Homem prevê que toda pessoa tem direito à
propriedade. O acesso universal à propriedade é o fundamento de
todos os sistemas nacionais reguladores das diversas propriedades”
2.
Interessante propugnar,
pelo melhor entendimento a respeito dos direitos humanos, suas raízes
e implicações constitucionais por um prisma universal:
Além da
constitucionalização, no âmbito interno, a relevância ética do
direito subjetivo se mostra também no âmbito da internacionalização
do direito. Como o direito internacional não possui um aparato
dogmaticamente organizado para que se possa falar de um ordenamento
jurídico coercitivo, os direitos subjetivos que pretendem validade
intrínseca, mas não são garantidos internacionalmente, tornam-se
direitos humanos. Para seus defensores, os direitos humanos devem
não apenas prevalecer sobre os ordenamentos nacionais, mas também
merecer reconhecimento universal3.
Busca-se, a partir do
direito positivo sistematizado, a estruturação dos conceitos afetos
ao tema, como sendo a destilação da própria normatização pátria,
não podendo jamais "prescindir da análise da sociedade na sua
historicidade local e universal" 4.
Tal condicionante se
impõe ao observar a influência do Código Civil Alemão, escola
pandectista de Bernhard Windscheid, sob a ótica unitária do
direito, conforme ensinamento notável de Orlando Gomes:
A
influência do Direito
germânico,
notadamente no que tange à transmissão e publicidade dos direitos
reais, sobre o Código Civil alemão faz-se notar no Direito das
Coisas por forma a que se pode afirmar ter sido a parte do BGB em que
mais se afasta do Direito
Romano.
É,
sobretudo, na organização das regras atinentes à transmissão da
propriedade que o direito codificado da Alemanha se singulariza, não
só pela incorporação de costumes longamente observados, como pelo
refinamento com que os legisladores procuraram apurar a técnica
legislativa no particular 5.
A propriedade privada, ao
longo dos tempos, dos reinos, das organizações e da burguesia
viu-se cada vez mais como uma ferramenta de dominação, de status e
poder, sem se esquecer de outras tantas influências, destacando,
dentre elas, a Revolução Francesa:
A partir do século
XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam
a propriedade. A Revolução Francesa recepciona a ideia Romana. O
Código de Napoleão, como consequência, traça a conhecida
concepção extremamente individualista do instituto no art. 544:
“propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais
absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis ou
regulamentos". Como sabido, esse código e as ideias da
Revolução repercutiram em todos os ordenamentos que se modelaram no
Código Civil Francês, incluindo-se a grande maioria dos códigos
latino-americanos6.
Não se pode olvidar dos
costumes atinentes a cada povo, império ou contingente populacional,
como marcas de um tempo. Nesse ínterim se observa, através da
história, grandes realizações, dentre elas, a do "Imperador
Justiniano, que ordenou a estruturação do Corpus
Juris Civilis"
7,
observando que "o conceito e compreensão, até atingir a
concepção moderna de propriedade privada, sofreram inúmeras
influências... sendo decorrência direta da organização política”
8.
O "exagerado
individualismo9
perde força no século XIX com a revolução e o desenvolvimento
industrial e com as doutrinas socializantes. Passa a ser buscado um
sentido social da propriedade" 10.
Torna-se fato
incontestável, sob o prisma da história mundial, que a propriedade
se delineou como mecanismo de adequação de interesses sociais,
sendo um conjunto frutífero de "razões" politicamente
organizadas, a partir de uma minoria burguesa dominante.
O direito responde ao
anseio coletivo, a gênese social, gerado através do clamor
democrático da Constituição Federal de 1988, fruto da luta de toda
uma geração de brasileiros comprometidos com o país, provocando o
rompimento de velhos conceitos e o florescer de novos horizontes
legais:
...a Constituição deve
ser o retrato fiel das condições reais do Estado, devendo refletir
também a realidade do país e de seu povo. O atendimento às
necessidades sociais, políticas e econômicas do Estado e da nação
caracterizam postulados fundamentais, juntamente com o advento de um
arcabouço jurídico que venha permitir a posterior criação de
normas capazes de atender às demandas da população11.
...A Constituição, ao
estatuir os objetivos da República Federativa do Brasil, no art. 3º,
I, estabelece, entre outros fins, a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária. Ainda no mesmo art. 3º, no inciso III,
há uma outra finalidade a ser atingida, que completa e melhor define
a anterior: a erradicação da pobreza e da marginalização social
e a redução das desigualdades sociais e regionais. Tais objetivos
foram destacados, no texto constitucional, no Título I, denominado
"Dos Princípios Fundamentais", e, como tal, a sua
essencialidade - qualidade do que é essencial e fundamental - faz
com que desfrutem de preeminência, seja na realização pelos
poderes públicos e demais destinatários do ditado constitucional,
seja na tarefa de os interpretar e, à sua luz, interpretar todo o
ordenamento jurídico nacional 12.
As rupturas com o modelo
de propriedade privada existente no Brasil à época do Código Civil
de 1916 foram marcantes, provocando profundas alterações no
universo social do país:
...a propriedade, tal
como concebida no Código Civil de 1916, desapareceu no Brasil após
a CF de 88; sua nova disciplina se fez no bojo de uma ampla reforma
da ordem econômica e social; a ideia de um aproveitamento puramente
individualista da coisa por seu dono foi integralmente substituída
pelo conceito de função de caráter social do bem, provocando uma
linha de ruptura entre os antigos conceitos normativos e a nova ordem
constitucional; a visão do caráter absoluto da senhoria sucumbiu
perante o interesse social 13.
Ocorre que os mais
conservadores e ainda enraizados em velhas percepções oriundas de
uma cultura de dominação da minoria sobre a coletividade
desprestigiada pelo Estado, luta para perpetuar seus instrumentos de
demonstração de poder, onde a propriedade privada se encaixa como
fruto do alcance da arrogância econômica, mesmo sem qualquer
finalidade social.
Nota-se que antigas
perspectivas interpretativas que vislumbravam a propriedade apenas
como “... o poder de dispor arbitrariamente, da substância e das
utilidades de uma coisa, com exclusão de qualquer outra pessoa"
14,
ainda que como fruto do "direito à objeção de consciência"
15,
cedeu lugar a uma percepção realista e contemporânea da sociedade:
A inclusão dos
institutos de direito civil, como contrato, propriedade e família,
na agenda atinente à ordem pública associa-se à irradiação dos
princípios constitucionais nos espaços de liberdade individual. Com
efeito, a partir da interferência da Constituição no âmbito antes
reservado à autonomia privada, uma nova ordem pública há de ser
construída, coerente com os fundamentos e objetivos fundamentais da
República. Afinal, o código civil “é o que a ordem pública
constitucional permite que possa sê-lo”. E a solução
interpretativa do caso concreto só se afigura legítima se
compatível com a legalidade constitucional 16.
Deixando as questões
históricas como pano de fundo e passando a trilhar as imposições
propostas pela normatização vigente passa-se a abordar conceitos
mais atuais, referentes às tratativas condizentes a propriedade
privada.
O parágrafo 1º do art.
1.228 do novo código civil brasileiro consagra a função social
“como aspecto interno redefinidor do núcleo de poderes do
proprietário (aspecto funcional)” 17.
"Sem dúvida, embora
a propriedade móvel continue a ter sua relevância, a questão da
propriedade imóvel, a moradia e o uso adequado da terra passam a ser
a grande, senão a maior questão do século XX" 18,
fato que se agrava no século XXI com a aguda crise econômica
mundial.
"A realidade
inquestionável é que a propriedade já não é o direito absoluto a
todos oponível e garantidor” 19,
cabendo ao titular conferir ao bem imóvel sua devida função
social.
A propriedade privada no
âmbito urbano é premissa de dignidade para a pessoa humana enquanto
moradia, não podendo ser tratada como estandarte de dominação. "A
moradia é direito social. Direito fundamental social prestacional,
para ser mais exato... O teto é imprescindível à garantia da maior
parte de todos os demais direitos pertinentes ao ser pensante"
20.
"A concepção de
propriedade continua a ser elemento essencial para determinar a
estrutura econômica e social dos Estados" 21,
que são os agentes de estabilidade ou instabilidade em detrimento da
ebulição da sociedade sobre a qual operam.
Nessa atmosfera
observa-se, como ponto de partida, a Constituição Federal, que em
seu bojo, sendo uma “unidade sistêmica por conduto das
normas-princípio, alçadas à dignidade operativa de primus
inter pares”
22,
provoca questionamentos pertinentes. Estes se confrontam com modelos
periféricos à Gestão Pública implantada por alguns Órgãos do
Estado, quando comparados com a condição diacrônica dos cidadãos
em relação à defesa de seus direitos:
Art. 5º Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII - é garantido o
direito de propriedade;
XXIII
- a propriedade atenderá a sua função social; 23.
Urgem, não obstante às
tratativas constitucionais, as transformações civilistas
interpostas pelo surgimento da nova Lei. O Código Civil de 2002,
diferentemente do Código anterior de 1916, traz como matiz de sua
existência a função social da propriedade privada, tal qual, de
certa forma, o Estatuto da Cidade.
Aparece então, mais uma
vez, a antítese direito e dever, que para os detentores de terra,
não se aplicaria a propriedade em si, tal como se viu outrora, no
Brasil, com o surgimento da Lei da Terra24
- “primeira tentativa para organizar a propriedade privada no
Brasil” 25.
Por esse viés de
observação cabe pontuar algumas considerações contemporâneas
sobre os cidadãos sem moradia e as organizações civis que buscam
atendê-los:
As
exigências sociais colocadas pela modernidade impuseram o
abrandamento do conteúdo absoluto da propriedade de forma a
propiciar a adaptação do instituto às incessantes mudanças da
realidade histórica. Não é mais possível considerar a propriedade
fora do contexto social e histórico ou definir-lhe a essência por
meio do conceito e da abstração 26.
A propriedade privada
urbana deve atingir seu fim social, dentro de parâmetros legais preestabelecidos à coletividade, não servindo de parâmetro de
aferição do poder. Ocorrendo o contrário, fugindo a legalidade
constitucional, oportunizará limitações ao homem, muitas vezes,
naquilo que é reflexo de sua própria natureza:
A consciência científica
da unidade do ordenamento e do recíproco condicionamento dos
institutos permitiu superar a perspectiva do direito civil
essencialmente patrimonialista - influente sobre a individualização do
seu âmbito de competência e das suas técnicas - e indicou novos
caminhos, em parte ainda por percorrer, na direção da
democratização e eficiência do aparato do Estado e dos entes
públicos: fenômeno reconhecidamente definido como privatização
do direito público.
Interesses privados e interesses públicos ganham um significado
histórico, que não permite uma classificação rígida e dogmática
que reproduza experiências já superadas. O diverso perfil
quantitativo dos interesses, a forte presença de interesses gerais
no âmago das situações tradicionalmente individualistas, a
recuperação - sobretudo fora do campo patrimonial - da privacidade
e da privatização de amplos setores são o fundamento da exigência
cada vez mais advertida pelo direito civil, não como antagonista do
direito público, mas como aspecto do ordenamento na sua unidade
funcional 27.
A realidade
civil-constitucional se impõe pela pujança de valores concebidos a
partir de uma interpretação aguçada pela essência do ser social.
As discussões sobre a soberania dos interesses coletivos em
detrimento dos individuais sobre a propriedade privada urbana é uma
longa jornada que ainda será vivenciada por muitos pensadores:
A propriedade tem sido
objeto das investigações de historiadores, sociólogos,
economistas, políticos e juristas. Procuram todos fixar-lhe o
conceito, determinar-lhe a origem, caracterizar-lhe os elementos,
acompanhar-lhe a evolução, justificá-la ou combatê-la. Em obra
sistemática, em monografia, em estudo avulso – é assunto sempre
presente na cogitação do jurista 28.
Sendo
assim, o princípio da função social da propriedade avança no
sentido de concretizar-se em um dever de agir, transformando-se em
uma atitude positiva de realização em benefício do bem-estar
social, principalmente no âmbito urbano como reflexo de moradias que
atendem a necessidade coletiva.
1
NALINI, José Renato. Direitos que a Cidade Esqueceu, 1ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 38;
2
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais, 6ª
ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Pág. 182;
3
ADEODATO, João Maurício. Uma Teoria Retórica da Norma Jurídica
e do Direito Subjetivo. 1ª ed. São Paulo: Noeses, 2011. Pág. 343;
4
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil, 3ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2007. Pág. 1;
5
GOMES, Orlando; FACHIN, Luiz Edson; BRITO, Edvaldo (Org.) Direitos
Reais. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Pág. 443;
6
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Direitos Reais, 9ª ed.
São Paulo: Atlas, 2009. Pág. 159;
7
JÚNIOR, José Cretella. Curso de Direito Romano, 21ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 1998. Pág. XI;
8
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Direitos Reais. 9ª ed.
São Paulo: Atlas, 2009. Pág. 157;
9
Visão individualista do Código de Napoleão;
10
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Direitos Reais. 9ª ed.
São Paulo: Atlas, 2009. Pág. 159;
11
GARCIA, Maria; AMORIM, José Roberto Neves. Estudos de Direito
Constitucional Comparado. 1ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.
Pág. 57;
12
MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana, 1ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2010. Pág. 237;
13
FACHIN, Luiz Edson; TEPEDINO, Gustavo. O Direito e o Tempo. 1ª ed.
Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 583;
14
MUCCILLO, Jorge A. M. Propriedade Imóvel e Direitos Reais, 1ª ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1992. Pág. 11;
15
MORAES, Maria Celina Bodin de; KONDER, Carlos Nelson. Dilemas de
Direito Civil- Constitucional. Casos e Decisões. 1ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2012. Pág. 57;
16
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil - Tomo III, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2009. Pág. 4;
17
TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina
Bodin de. Código Civil Interpretado: Conforme a Constituição da
República – Vol. III. 1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011. Pág.
500;
18
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Direitos Reais, 9ª ed.
São Paulo: Atlas, 2009. Pág. 159;
19
NALINI, José Renato. Direitos que a Cidade Esqueceu. 1ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, Pág. 156;
20
NALINI, José Renato. Direitos que a Cidade Esqueceu. 1ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. Pág. 38;
21
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil - Direitos Reais, 9ª ed.
São Paulo: Atlas, 2009. Pág. 159;
22
BRITO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição, 1ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006. Pág. 141;
23
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988;
24
Lei 601 de 18 de Setembro de 1850;
25
Visão individual;
26
OLIVEIRA, Francisco Cardozo. Hermenêutica e Tutela da Posse e da
Propriedade. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. Pág. 55;
27
PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional,
1ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. Pág. 148 a 149;
28
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 20ª
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. Vol. IV. Pág. 85;